Com seu progressivo esvaziamento, o fórum, que já era pobre em matéria de criação de vetores de ação, ficou mais pobre ainda, o que compromete sua eficácia frente aos muitos desafios das nações.
Por Flavio Aguiar [*]
22.01.2016
Na quarta-feira (20 de Janeiro), começou mais uma edição do Fórum Econômico de Davos, na Suíça. O fórum já teve mais prestígio e proeminência. Mas ainda continua sendo um espaço de importância geo-política e econômica.
No dia 19, o jornalista Graeme Wearden listou no The Guardian oito temas que ele considera chaves para o encontro deste ano (a lista é dele, os comentários são meus):
1. A robotização (automação) do trabalho e da economia. A tsunami da automação no mundo, que já vem cobrindo o território do chamado "trabalho de colarinho azul" (o operariado) está chegando rapidamente ao abdômen do chamado "trabalho de colarinho branco", o mundo dos serviços, dos executivos e até dos dirigentes de empresas e serviços públicos.
É crescente a automação dos processos de tomada de decisão em bolsas de valores, empresas financeiras, agências de governo, até mesmo de protocolos hospitalares e outras áreas da vida econômica e social.
2. A crise dos refugiados e o terrorismo na Europa e no mundo. O tema dos refugiados têm alcance mundial. O Brasil invocou nesta área, ao definir a criação de categorias como o "refugiado econômico" e o "refugiado de catástrofes ambientais".
O tema é particularmente sensível na Europa, devido à vinculação que políticos de direita vêm fazendo sistematicamente entre o aumento dos refugiados e o aumento potencial de ataques terroristas ou de episódios como o arrastão sexual em Colônia, na Alemanha, durante a noite de Ano Novo.
3. A turbulência das bolsas e mercados. O ano de 2016 abriu com enormes turbulências nas bolsas do mundo inteiro. Na China a situação tem níveis dramáticos, indicando fuga de capitais e provocando reações e efeitos negativos em todas as economias do mundo, inclusive na brasileira. O preço das commodities despenca. Mas nada de importante ocorrerá nesta área enquanto não houver a disposição de criar mecanismos internacionais de controle destes mercados.
4. As mudanças climáticas. O mundo atingiu um outro patamar, mais positivo, nesta área com a celebração do acordo ao final da COP21. Porém, há fatores de risco quanto a este tema, sendo o principal deles a eleição de algum dos pré-candidatos republicanos à presidência dos Estados Unidos, já que todos eles prometem jogar o acordo no lixo, junto com o acordo sobre o programa nuclear do Irã e o reatamento de relações diplomáticas com Cuba.
Além de que provavelmente não só reabririam a prisão de Guantánamo (se o presidente Obama cumprir a promessa de fecha-la até o final do seu mandato), como abririam outras pelo mundo afora e retomariam a prática das torturas.
5. A sempiterna crise econômica europeia. O que fazer para dinamizar a combalida economia europeia? Bom, enquanto prevalecer a atual hegemonia neoliberal no continente e na formação de seus economistas não haverá muito o que fazer. As economias do continente têm muitas vezes seus dados sobre desemprego parcialmente maquiados pela fuga de emigrantes para outros países. Como a chegada dos milhões de refugiados incidirá sobre esta realidade? A ver.
6. A desigualdade social planetária. Trato deste tema ao final deste artigo.
7. A produção de vacinas e remédios. O biênio 2014/2015 trouxe à tona a necessidade de respostas mais rápidas e organizadas a catástrofes como o surto do vírus Ebola no Ocidente da África. Mas há outros fenômenos endêmicos, como a malária, a dengue, agora o zika no Brasil. Ao lado deles, há a crescente consciência da necessidade de combater preventivamente cânceres e doenças vasculares. Tudo isto depende do melhor controle público sobre a produção de remédios e vacinas.
8. A relação entre crimes cibernéticos e liberdades civis. A multiplicação dos crimes (até da guerra) nos espaços virtuais e das violações de direitos civis (como o da privacidade) demonstrou a necessidade de se abrir o caminho para uma atualização da legislação internacional a respeito. Com a adoção de seu novo Marco Regulatório, o Brasil mostrou o caminho. Mas isto não chega. Um Brasil só não faz verão no mundo.
Sobre a desigualdade:
A Oxfam (sigla para The Oxford Committee for Famine Relief, uma confederação fundada na Inglaterra em 1942 e que hoje reune 17 organizações que atuam em 94 países) vai levar seu relatório anual sobre a desigualdade ao Fórum. O relatório aponta índices dramáticos.
As 62 pessoas mais ricas do mundo detém tanta riqueza quanto metade da população mundial, cuja estimativa, segundo o The Economist é de 7,4 bilhões de pessoas. 1% da população detém a mesma riqueza que o restante 99%.
Entre 2010 e 2015 a desigualdade aumentou vertiginosamente. Os 50% mais pobres do planeta viram suas posses diminuirem em 41%, apesar do número de habitantes do planeta ser acrescido em 400 milhões de pessoas. Já aqueles 62 mais ricos acresceram seu patrimônio em 500 bilhões de dólares, atingindo a marca de 1,76 trilhões de dólares.
Para comparar, o PIB brasileiro, em seu auge, algum tempo atrás, passou um pouco dos três trilhões de dólares anuais, e agora deve andar pelos 2,4 trilhões. Para completar este quadro devastador, a Oxfam revela que 30% da riqueza africana é mantida "offshore", isto é, fora do continente, o que implica uma evasão anual de 14 bilhões de dólares em impostos sonegados, cuja aplicação poderia, entre outros efeitos, garantir escola para todas as crianças do continente.
A propósito: a única região do globo onde, neste período, a desigualdade diminuiu, foi a América Latina, Brasil inclusive. Para desespero dos nossos "impichadores".
Seria possível acrescentar mais dois ítens à lista do blogueiro da área econômica do Guardian: o combate à fome e a paz mundial - sobretudo, hoje, na Síria e Iraque, mas também em outras regiões. O primeiro tema está ligado ao do combate à desigualdade. O segundo também, mas depende da revalorização e reforma de organismos internacionais, como a ONU.
Estará o Fórum de Davos à altura de tais desafios? Com seu progressivo esvaziamento, o fórum, que já era pobre em matéria de criação de vetores de ação, ficou mais pobre ainda, o que compromete sua eficácia.
Seria de esperar uma maior eficácia de outros fóruns, como o Fórum Social Mundial, ora reunido, sob forma temática, em seu berço, Porto Alegre. Mas o FSM também vem passando por um processo de esvaziamento, com sua transformação em espaço de intercâmbio de ideias tão somente.
Mesmo assim, também não se pode subestimar sua importância, inclusive como contraponto ao mundo estratificado de Davos.
Publicado no Blogue de Miro "Uma trincheira na luta contra a ditadura mediática" | 21.01.2016 | Rede Brasil Atual.
[*] Flávio Wolf de Aguiar (Porto Alegre, 1947) é professor, autor, jornalista, tradutor brasileiro, organizador e colaborador de dezenas de livros. Seu nome de autor mais comum é Flávio Aguiar. Atualmente vive em Berlim, onde é correspondente de publicações brasileiras, impressas ou na internet, fazendo reportagens também para TV e rádio. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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